Rota Dez

Além da Gravura

Além da amizade, outro fator que une Diô Viana, Julio Castro e Marcelo Oliveira é a gravura. Todavia, suas produções ultrapassam a tradição.

Os impressos de Marcelo Oliveira são os que, com maior frequência, conservam certa crueza do meio, indo direto de uma matriz única para a impressão, com poucas intervenções ou sobreposições. Isso não significa que ele não expanda os campos da gravura. Oliveira já fez intervenções gráficas no tecido social em diversas ocasiões. Por vezes, é difícil – se não impossível – separar sua poética artística da ação política. Não a partidária, mas aquela presente na existência de todos os cidadãos, a do posicionamento diante das situações cotidianas. A aparente simplicidade das formas e o uso constante de palavras corroboram seu pensamento no mundo das artes, que não está apartado da vida comunitária. A opção pelos princípios básicos da xilogravura e da isogravura tem por objetivo simplificar o processo de impressão, o que igualmente agiliza o ensino nas oficinas que ministra para um público de não artistas em sua atuação social.

Nos trabalhos desta exposição, Julio Castro utiliza recursos de impressão em estêncil, nos quais faz uso de máscaras em papel recortado, abdicando de matrizes gravadas tradicionalmente. Isso produz acontecimentos imagéticos sobre a superfície do papel que se assemelham aos utilizados em pintura e aquarela, como a aguada, levando o trabalho para outra visualidade. Suas sobreposições de múltiplas matrizes não são meras exibições de maestria técnica, pois estão a serviço de seu pensamento plástico. Rostos dentro ou por cima de outros compõem um mosaico de individualidades que, no conjunto, se tornam anônimas. Suas quimeras nos atraem e nos incomodam. Tentamos reconhecer um rosto ali ou outro acolá, contudo, o que encontramos não é reflexo, mas reflexão.

Diô Viana costuma misturar procedimentos artísticos: gravura, desenho, pintura, colagem, fotografia. Frequentemente no limite entre figuração e abstração, suas imagens provocam a percepção sensorial do espectador. Não é incomum que sua investigação gráfica conteste a relação figura e fundo, sobrepondo elementos de igual importância na composição. Suas insinuações de volumetria e de profundidade advêm desse acúmulo de camadas ritmadas e construídas em etapas distintas, aproximando a aparência final dos trabalhos mais da perspectiva atmosférica do que da geométrica. Muitas cenas que constrói provêm de registros fotográficos realizados na Amazônia, sua região de origem. A mistura dessa experiência, do aprendizado com seus professores, dos anos passados em México, França e Colômbia, resulta na singularidade de sua obra.

A gravura impressa em papel, um dos meios mais tradicionais, tem seus limites alargados no fazer desses três artistas. Um elemento que perpassa os trabalhos de Diô Viana, de Julio Castro e de Marcelo Oliveira é uma espécie de subversão das hierarquias, presente tanto nos recursos técnicos quanto nas poéticas, em uma conjunção bem estruturada e equilibrada desses componentes de um trabalho de arte.

Em época de relações intermediadas por aparatos eletrônicos, entrar em contato com trabalhos em papel impresso, perceber suas nuanças e camadas imagéticas é como o exercício constante de desenvolver a empatia nas relações presenciais, analógicas.

André Sheik, março de 2023.

Em um estúdio na rua do Oriente, no alto de Santa Teresa, histórico e boêmio bairro carioca, somos convidados a adentrar um armário com fundo falso – “A criança, o livro e a taça de cristal”– é o Ato I da trilogia Sagrada Família da Rua, segunda individual do artista visual Hagamaia, tendo como convidados Beth Mourão, Santho (que formam o coletivo Trinca do Encantado), Elmo Martins e participação de Hayrton Janú, em uma incursão ao universo interior, casa-ateliê onde o artista cria uma ficção fantástica. Feita a partir de elementos biográficos, o artista mostra um repertório diverso composto em múltiplas camadas de significados formalizados em uma espécie de bricolagem expandida, que é também uma proposta de vivenciar uma narrativa como experiência coletiva ou, dito de outra maneira, é uma viagem pelo espaço-tempo subconsciente do artista.

Mas quem vos fala e conta essa história é o Tio Lellé, que nos apresenta sua máquina utópica de resolver problemas e demais personagens que vamos descobrindo ao percorrer os espaços-labirintos. Como uma espécie de percurso em uma história em quadrinhos ao vivo, vamos ao encontro de outros personagens que nascem da fragmentação do inconsciente do artista. Não somente representam arquétipos, como também têm suas relações com a vivência da cultura da rua, a religiosidade de matriz africana, histórias que pesquisa em livros, conversas que escuta dos moradores pitorescos do bairro.

O passado e o presente se misturam nesse retorno aos anos 1920 no Rio de Janeiro. Tudo se mistura, sua vida-obra, mais um exemplo dessa relação estreita entre as fronteiras de arte e vida. Uma vida que flui, uma roda que gira. Quando descemos ao subnível do ateliê encontramos um salão ainda mais escuro e o epicentro deste mundo. Há também as portas que dão acesso a outros quartos, com colaborações de artistas e pesquisadores que convivem e cocriam com Hagamaia. “Os artistas Beth Mourão e Santho não formam apenas um coletivo, mas também uma família. São testemunhas do processo e estão alÍ nas obras. Elas são os modelos não só com o físico, mas com o mental e a alma de cada um dos personagens apresentados”, como define Hagamaia.

Preparem-se para uma experiência que extrapola as obviedades das experiências prévias de arte. Nesta exposição-vivência, Tio Lellé abre uma porta para que também possamos nos desprender dos preconceitos sobre o que pode ser arte. É um resgate da sua criança que o artista faz. E uma criança sonha de modo mais livre, sem as restrições a responsabilidades inerentes à vida adulta.

Crescer e viver é doloroso. Nesse sentido, a proposta de arte deste encontro é cicatrizar pelo brincar. Nos descobrir ao afirmar nossa identidade errática, em constante transmutação.

Dentre as múltiplas vidas que Hagamaia administra, vemos um cientista-artista realizando um estudo de si. Uma autópsia em que ele nos convida a assistir, um “cadáver exquise”, como o jogo surrealista que subverte o discurso literário convencional. Delira sobre temas que têm uma certa “obsessão”, numa costura de apropriações e ressignificações, em complexidade de temas que articula em sua obra em aberto, uma experiência para a criança que habita em nós.

Kelly Saura